O Peregrino Interior: a Caminhada de Setúbal a Fátima
- 5 de dez.
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A figura do peregrino atravessa séculos como arquétipo da deslocação que procura, acima de tudo, o reencontro consigo mesmo. Ao contrário do turista, que se move em direcção ao exterior, e do alpinista, que se orienta pela conquista física do cume, o peregrino percorre, sobretudo, uma geografia íntima. A viagem torna-se, assim, menos um deslocamento no espaço e mais um movimento na consciência. Como afirma Bachelard, “viajar é despertar” (BACHELARD, 1957: 14), e poucas formas de deslocação despertam tanto como a peregrinação.
A minha experiência pessoal reforçou esta ideia. Há 12 anos, percorri a pé o trajecto de Setúbal até ao Santuário de Fátima, uma caminhada que exigiu disciplina, resistência e entrega. Cada quilómetro marcado no chão foi também um quilómetro percorrido dentro de mim. O esforço físico tornou-se catalisador da introspecção, o cansaço acentuava a atenção ao ritmo da respiração, ao movimento dos pés e ao silêncio interior. Ao longo do caminho, a paisagem e os encontros com outros peregrinos criaram uma rede de significados, a viagem não era apenas geográfica, mas existencial. A Filosofia da Viagem, tal, enfatiza que o acto de viajar é sempre também um acto de transformação, uma reinvenção do olhar e, muitas vezes, do próprio sujeito. O peregrino assume esta transformação como propósito: cada etapa é uma pergunta, cada pausa é uma possibilidade de escuta.
Antes de iniciar a caminhada, levava comigo um gesto simbólico, a caneta que habitualmente uso nos meus encontros e palestras. Através dela, explico aos participantes que, “Talvez o arcano seja só um espelho. Ou talvez seja a semente de um novo caminho. Cada um escolhe o que nasce daí.” Durante a peregrinação, esse gesto de elevação tornou-se prática meditativa, uma forma de escrever mentalmente a minha história, de dialogar com os símbolos do Tarot e de organizar a própria existência. Cada passo ressoava uma consciência mais profunda do presente, transformando a estrada numa experiência de imersão completa.
A peregrinação não exige necessariamente uma motivação religiosa, mas requer sempre intenção, uma disposição para o despojamento e para a abertura. Mircea Eliade destaca que o trajecto sagrado “reordena o mundo e devolve ao viajante a consciência do essencial” (ELIADE, 1963: 42). A caminhada de Setúbal a Fátima provou esta máxima, a viagem não consistia apenas em percorrer metros, mas em percorrer camadas da própria consciência, confrontando desafios, medos e escolhas. Um liminar entre o habitual e o sagrado. A caminhada marcou o abandono provisório das urgências quotidianas e permitiu a construção de um espaço de silêncio que é, simultaneamente, exterior e interior.

A Filosofia da Viagem ensina-nos que existe um modo de viajar que não procura respostas rápidas, mas maturação. O peregrino interior não corre, caminha. Observa, respira, escuta. O próprio acto de seguir um caminho, mesmo quando não sabemos exactamente o destino, transforma-se numa metáfora viva, a metáfora da existência. Em Fátima, cada passo ressoava essa consciência, a de que a viagem é tanto mais significativa quanto maior é a abertura para deixar que ela nos toque. A peregrinação, enquanto modalidade extrema de imersão, desfaz fronteiras entre o lugar visitado e o sujeito que visita. Michel Onfray acrescenta que “o viajante transporta o itinerário dentro de si” (ONFRAY, 2009: 88), e senti-o intensamente, o caminho prolongou-se para além do regresso físico, mantendo-se como espaço de reflexão contínua, reorganização de prioridades e consciência de cada instante vivido.
Ser peregrino é aceitar que a viagem se faz com os pés, mas também com a alma. A experiência pessoal revelou que o essencial da viagem não está apenas no lugar para onde se vai, mas no lugar de onde se regressa e, sobretudo, na pessoa que regressa transformada.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. 1957. A Poética do Espaço. Paris: Presses Universitaires de France.ELIADE, Mircea. 1963. O Sagrado e o Profano. New York: Harcourt.ONFRAY, Michel. 2009. Teoria da Viagem: Geografia e Filosofia. Lisboa: Quetzal.
Nota: Os meus filhos só me acompanharam na entrada do Santuário.







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