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Entre o Chá e a Psicopatologia: Reflexões sobre Cuidado, Crença e Sofrimento Humano

  • 10 de nov.
  • 3 min de leitura
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Existem encontros que revelam, com uma clareza quase dolorosa, a complexidade do sofrimento humano. A prática diária num espaço holístico torna visíveis histórias que os serviços formais de saúde raramente alcançam. Histórias de solidão, de perdas, de crenças que moldam a realidade, e de sintomas que se enraízam em terrenos sociais, emocionais e económicos difíceis de desatar.

Foi nesse contexto que, num dia comum, entrou na nossa loja uma senhora de quase setenta anos, profundamente angustiada com “monstros” que habitavam a sua casa: lagartos de olhos encarnados que deitavam fumo e libertavam bicharocos que a picavam sem descanso. Dormia no chão, evitava o próprio colchão, e guardava no corpo e na mente marcas de sofrimento que nenhum médico, terapeuta ou curandeiro parecia conseguir aliviar. Acreditava também ser alvo de feitiçarias das vizinhas, num processo de atribuição que lhe dava um sentido para o caos interior que vivia.

Rapidamente se tornou claro que a raiz do sofrimento não estava nos bichos imaginados, mas num conjunto de perdas acumuladas: o abandono do marido, uma história de isolamento social, uma reforma reduzida, a falta de rede de apoio, o declínio progressivo do bem-estar emocional. O mundo interior desorganizado projetava-se para o exterior através de imagens simbólicas, corporais e ameaçadoras. Um quadro provável de psicopatologia, mas também e sobretudo um quadro de uma vida que se foi estreitando até já não haver espaço para respirar.

A intervenção possível naquele momento não passava por contrariar as suas crenças, mas por partir delas para criar um ponto de estabilidade. Propus então uma solução simples, acessível e segura, chás calmantes de laranjeira, valeriana, usados não apenas como bebida, mas em lavagens corporais e borrifadores, um ritual simbólico que lhe devolvesse a sensação de controlo sobre o seu espaço e sobre si mesma.

O resultado foi surpreendente. Quinze dias depois, regressou com um abraço e uma afirmação transbordante: “Resultou!” A remissão não foi definitiva, mas foi suficiente para lhe dar algum alívio, alguma luz, algum chão onde pousar. Ajustaram-se as ervas quando os sintomas regressaram, mas a verdadeira lição do caso não estava nas plantas utilizadas, estava no impacto do acolhimento, do ritual, da validação e da sensação de cuidado.

Meses depois, outro caso semelhante confirmou esta intuição. Uma senhora que atribuía à casa e não à sua história de vida, a origem de todos os azares, doenças e insónias. Os mesmos mecanismos, a mesma angústia, a mesma sobrecarga emocional. Recebeu a mesma fórmula, com o mesmo propósito: devolver-lhe um espaço simbólico de segurança. Dias depois regressou transformada, arranjada, maquilhada, animada. Dormia melhor. Sentia menos peso. Continuava com problemas, sim, mas agora com mais capacidade para os suportar.


O que estes casos nos ensinam?

  1. O sofrimento psicológico manifesta-se muitas vezes através de narrativas simbólicas. Lagartos, bicharocos, feitiços, não são apenas ilusões; são expressões de emoções profundas que procuram forma para existir.

  2. A validação e o acolhimento têm um impacto terapêutico tão relevante quanto qualquer intervenção técnica. Ser ouvido, ser visto, ser levado a sério, especialmente quando ninguém mais o faz, pode ser o primeiro passo para reestabelecer o equilíbrio.

  3. Os rituais simples têm poder. Não pela magia atribuída, mas pela estrutura que oferecem. O acto de preparar um chá, de limpar a casa, de cuidar do corpo, devolve ao indivíduo uma sensação de agência perdida.

  4. As vulnerabilidades sociais amplificam o sofrimento emocional. Reformas pequenas, isolamento, ausência de redes de apoio, tudo isto cria um terreno fértil para ansiedade, medo, ideias persecutórias e percepções

    distorcidas da realidade.

  5. A interdisciplinaridade é essencial. Estes casos lembram-nos que psicologia, espiritualidade, práticas tradicionais e cuidado comunitário não precisam de ser mundos separados. Podem e devem dialogar.


O trabalho com pessoas que carregam sofrimento mental profundo exige cuidado, responsabilidade e discernimento. Não substitui acompanhamento especializado, mas pode complementar, suavizar e preparar o caminho. Os chás, por si só, não “curam” psicopatologias. Mas curam, simbolicamente, a sensação de abandono, a solidão, o desamparo, a falta de escuta.

Curam porque devolvem ao indivíduo algo que talvez ninguém lhe tenha oferecido há muito tempo: tempo, atenção, humanidade.

No fim, fica a certeza de que a verdadeira combinação transformadora não são os chás é a presença, a compaixão e a capacidade de reconhecer o sofrimento para além da superfície dos relatos.

Isabel Valente Gomes


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